À procura do improviso – Joana Guerra

Tal como o nome indica, hoje darei início a uma rubrica destinada à procura do improviso. A ideia será partilhar, em cada texto, o trabalho de uma improvisadora que esteja ligada ao mundo da música em Portugal. Não por qualquer tipo de nacionalismo, sou descrente nesse tipo de ideias, mas porque há ainda um caminho muito longo a percorrer na divulgação da música de mulheres em Portugal. Algo que é fruto do que eu classificaria até como um grande atraso.

Joana Guerra foi a primeira improvisadora que procurei. Se pensarmos numa palavra para definir a sua música, será telúrica. Violoncelista, compositora, improvisadora e cantora, não é difícil fechar os olhos, escutá-la, e irmos ao encontro da Terra, de tudo o que vem do seu interior, e de tudo o que brota à sua superfície.

Foi numa escola perto de casa, nos subúrbios de Lisboa, que começou a aprender música, tendo mais tarde frequentado o Conservatório. Em 2011 iniciou-se a solo, voz e violoncelo, e a partir dai não parou mais.

Já lançou quatro álbuns da sua autoria, em 2013, Gralha, em 2016, Cavalor Vapor, em 2018, OsSo, e em 2020, Chão Vermelho. Durante este período tem trabalhado com diversos músicos na área do jazz, da música improvisada e experimental.

No seu primeiro disco, Gralha, são já reveladas muitas das qualidades de Joana Guerra enquanto criadora. É notória a sensibilidade para a escuta e reprodução dos sons que estão à nossa volta e que a natureza nos dá. A utilização do arco no violoncelo em notas longas, como um baixo contínuo, juntando-se o clarinete baixo de Ricardo Ribeiro, com intervenções de voz em diálogo com os restantes sons e melodias, algumas vezes provocando desarmonia,  transmite-nos esse ambiente telúrico, como se se tratasse de um chamado, um grito de lamento da Natureza.  O “pizzicato” nas cordas, em contraponto, transporta-nos para o detalhe, para o pormenor. Ao mesmo tempo, com a sobreposição das cordas em arco, dá-nos a ideia de desenvolvimento, da evolução e crescimento, no fundo, do ciclo da vida. Descobrimos e entendemos que o exercício da composição musical pode ser maravilhoso e muito interessante quando segue caminhos fora dos limites das técnicas de composição mais convencionais que muitas vezes caem na utilização mais repetitiva de padrões harmónicos e rítmicos. Na faixa “O mar”, a presença de Joana enquanto cantora e violoncelista é intensa. A força do som do violoncelo é, ao mesmo tempo, de uma grande sensibilidade, fazendo-nos viajar para o mar alto, onde as ondas balançam em dia de tempestade. 

Em Cavalos Vapor, é introduzida a percussão de forma mais presente e experimental.

Nos tempos de pandemia, 2020, surgiu o seu disco mais recente, Chão Vermelho. Foi apresentado em Lisboa, no auditório da Culturgest, a 8 de Junho de 2021. Foi levado a palco com Maria do Mar, no violino, e Carlos Godinho, na percussão.

Num concerto de mais de uma hora, o público foi envolvido pela música e pelo cenário criado por Miguel Domingues, com desenho de luz de Catarina Côdea. Um ambiente muito orgânico tomou conta da Culturgest, como se se ouvissem as fissuras do solo a estalar, e as pequenas raízes a perfurá-las, a crescer e a ocupá-las. Mais uma vez o contraponto fez-se muito presente que, ora estava no violoncelo através da utilização do arco ou das cordas dedilhadas, ora estava na percussão com o uso de diferentes instrumentos e objectos sonoros. A percussão também surgia ao acaso, inesperadamente, por vezes de forma aleatória, outras a marcar o ritmo, numa métrica continua. Sobre o contraponto contínuo, a voz da Joana parecia um chamamento, uma voz de alerta, selvagem, retratando sons um pouco animalescos, talvez de aves, talvez de lobos a trincar a sua presa. Salienta-se aqui um lado muito performativo de Joana Guerra.

O encanto profundo da sua música conduziu-me a mente para climas secos, quentes, onde o solo grita por água. Se por um lado a percussão e o violoncelo remetiam para esse ambiente, o violino de Maria do Mar guiava o ouvinte para os pormenores e as suas melodias com o arco retratavam talvez a pequena vida animal, quase que microscópica, que se move ou rasteja sobre esse chão vermelho onde interage o interior da Terra com o seu exterior, com a atmosfera.


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