Kora: o antes e depois de Sona Jobarteh

Fonte: conexaoafrica.com

Sona Jobarteh é a primeira mulher de uma família Griot a tocar kora profissionalmente. É, por isso, a primeira mulher a transmitir a tradição dos seus antepassados e da cultura Mandinga da Gâmbia. São assim chamadas, Griot, certas famílias da África Ocidental que, por tradição, levam de geração em geração a cultura do seu povo, os conhecimentos, as histórias, e a sua música. São famílias de artistas em que cabe ao homem passar esse conhecimento; na de Sona Jobarteh, esse legado já vem desde há sete séculos, mas pela primeira vez na História, cabe a uma mulher desempenhar esse papel.

Sona nasceu em Londres em 1983. É instrumentista, cantora, improvisadora e compositora. Toca kora desde a infância no seio familiar e, mais tarde, frequentou escolas conceituadas como a Royal School of Music e a Purcell School of Music. Sona estudou também música clássica, piano e violoncelo, mas foi com a kora que encontrou o universo musical mais poderoso para se expressar e comunicar, indo ao encontro das suas raízes.

A kora é um instrumento muito místico. Pela sua história, pelo som que transmite, pela música que toca, traz consigo magia. De uma técnica bastante difícil, é composto por vinte e uma cordas e é simultaneamente similar a uma harpa e a um alaúde. Para tocar este instrumento profissionalmente são necessárias horas de estudo e concentração. São ritmos e melodias que se repetem em ciclos, quase como mantras. Sobre essa base cíclica, tal como sobre um ostinato ou um riff, constroem-se variações e improvisos.

Escutar a música de Sona Jobarteh é mergulhar profundamente nas suas raízes, mas é também encontrar bases da música clássica, do jazz, do blues e até de algum rock ou pop. Contudo, devido à história colonialista do mundo, o mais provável é ter sido a música da Gâmbia a influenciar o blues, o jazz, o rock, mesmo que indiretamente.

Sona gravou ainda poucos álbuns, pois para si o determinante não é o número de álbuns que consegue lançar, mas, sim, o processo criativo e, para se dedicar a ele, pode demorar o tempo necessário. Destacam-se, entre os seus álbuns, Motherland – The Soundtrack to the Motion Picture, 2010, Fasiya, 2011, e Innovation Through Preservation, 2019.

Em Fasiya, podemos escutar músicas como “Jarabi”, com forte presença de ritmos africanos no djembé e marcados pelos ostinatos na kora, ou “Musow”, com um traço mais pop. Neste último álbum, Sona surge também a cantar, acompanhada por back vocals que são um elemento bastante característico da sua música.

Ao ver a dificuldade que havia na Gâmbia para muitos jovens continuarem os seus estudos, Sona decidiu dedicar-se também à educação e à formação: é diretora e fundadora da Academia da Gâmbia – uma instituição que preserva a música, a história e a cultura para os jovens deste país. É uma escola que ensina várias disciplinas, mas com foco na música.

Talvez possamos encontrar outras mulheres a tocar kora pelo mundo, mas, no caso de Sona Jobarteh, a magia e a sua grande conquista estão no facto de ser a primeira mulher Griot a fazê-lo, e muito bem.

Katharina Ernst ao vivo

Fonte: http://www.digitalinberlin.de

Katharina Ernst é a percussionista austríaca que estará na Gulbenkian no próximo dia 7, no Festival Jazz em Agosto.  Vem apresentar o seu primeiro álbum a solo, Extrametric.

Katharina nasceu em Viena, em 1987. Aos 9 anos começou a tocar bateria. Apesar de sozinha em palco, a sua performance artística é muito rica. Para quem for assistir ao concerto, deverá preparar-se para desconstruções rítmicas, polirritmias, viagens psicadélicas e muita abstração.

https://gulbenkian.pt/jazzemagosto/agenda/katharina-ernst/

Música e Liberdade

Violinista que entende os concertos como performances e que cada vez mais surge em projetos transdisciplinares, Maria do Mar tem um trajeto ainda curto – menos de 10 anos, vinda da música clássica – na improvisação, mas ao longo deste tempo tem-se destacado em vários dos seus circuitos, desde as suas colaborações com Ernesto Rodrigues a uma formação como Lantana, formado por mulheres porque, para todos os efeitos, há bandas só de homens. E não só: quando a jazz.pt conversou com ela num jardim em Lisboa estava quase de partida para o KISMIF, no Porto, a fim de tocar com uma banda punk, Matriarca Paralítica. Afinal, ela própria assume que tem «um lado muito punk».

Em que projetos estás atualmente envolvida?

São sempre vários. Nos últimos anos toquei com muita gente da música improvisada, portuguesa e estrangeira. O MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia teve nisso um papel importante. Há sempre grupos que vão surgindo. Neste momento, o grupo que está mais ativo é Lantana. Vamos tocar no ZigurFest. Alguns projetos pararam com a pandemia, mas vou recomeçar a tocar com Xentra, que é outro grupo a que pertenço. Lantana é um grupo feminino, somos todas mulheres: Maria Radich, Carla Santana, Joana Guerra, Anna Piosik, Helena Espvall e eu. O Xentra é com Miguel Mira, Philippe Trovão, José Bruno Parrinha e Miguel Almeida. Neste período recente, tenho feito mais concertos com Joana Guerra, em trio com Carlos Godinho. Estamos a apresentar o álbum da Joana, “Chão Vermelho”.Grande parte é improvisação, embora estruturada.

O que aprecias mais em música? O que ouves, o que gostas de tocar?

Comecei por ter uma educação musical clássica ou “erudita”, como gostam de chamar, mas tudo me interessa. Sempre fui muito eclética nos meus gostos, sempre ouvi rock, gosto imenso. Tenho um lado muito punk, que também toco às vezes com grupos desse tipo. Vou participar na KISMIF com um grupo de punk feminino chamado Matriarca Paralítica. Quase tudo me pode despertar a atenção e sempre ouvi muitas coisas diferentes, apesar de ter tido essa formação muito clássica – um género musical que adoro também e, claro, que me faz sentir em casa. Com o andamento das coisas, e pelo facto de ter sido professora, aprendi muito com as crianças, com os miúdos. Tudo isso me levou a pensar, a ligar a música a muitas outras coisas, à vida, à política… A arte é sempre um espelho do que se passa no mundo e isso também tem que ver com a minha vida e as de todos. Enveredei por aqui, que é o que tem que ver mais comigo, esta coisa mais experimental e improvisada (como tudo no nosso dia-a-dia) e mais livre, porque também é no que acredito que pode ser melhor politicamente.

Fala-me mais sobre a tua adesão à música improvisada. Esta é tida como uma música de escuta difícil e também de execução muito intensa. Como se estabeleceu a tua relação com esta tendência musical?

Esta música começou por ser não-idiomática, mas o conceito evoluiu e pode não ser necessariamente assim, nem de escuta difícil, porque é livre. Pode ir para muitos idiomas diferentes e cruzarem-se todos eles e ser tudo improvisado – isso também é música improvisada. Mas tem que ver com escuta. Sempre ouvi muita música, muito jazz, a chamada música do mundo, de outras culturas, e quase sempre essas músicas também têm um lado de improviso na sua tradição. Como professora, apercebi-me que temos muitos conceitos criados à priori, de coisas que não são bem assim, que nos são impostas pelo ensino, dentro da perspetiva política vigente na estrutura social. O ensino transmite isso de uma maneira que acho que mata muitas vezes a criatividade. Não somos todos iguais, mas somos iguais nessa unicidade; cada pessoa tem a sua criatividade, a sua identidade, e isso é tudo um bocado apagado, uniformizado. Somos todos colocados dentro de uma sala: «Agora tens de estar sentado, agora tens de ouvir isto, agora tens de tocar aquilo», porque essa é a regra, isso é o que “está certo”. Daí que tenha sentido a necessidade de ir ter com a liberdade de escuta e de expressão da música improvisada.

Acabei por ir para outros sítios e deixei a academia há quatro anos. Nos últimos anos dediquei-me mais à improvisação e só comecei a deixar a partitura há uns sete ou oito anos. Foi depois de um “atelier” que fiz no CCB com Butch Morris e o seu conceito de Conduction: condução de orquestra por meio de gestos codificados que se destinam à interpretação de improvisadores. Foi então que comecei. Esta é uma fase da minha vida, não foi sempre assim. Comecei a interessar-me pela improvisação e a sentir que este era o meu lugar na música, que havia algo mais para mim que não apenas interpretar peças de compositores. Também adoro e acho muito importante, porque acredito que cada visão é única, mas há imensa gente a fazê-lo e muito bem. O meio clássico é muito exigente e muito difícil, onde o erro tem uma importância enorme e negativa, sempre, nunca positiva. Fui atrás dessa ideia: «Mas porque é que o erro tem tanto peso assim, tanta importância?». Comecei a desconstruir tudo isso. Foi assim que vim parar aqui, à música improvisada, onde o acaso, o acidente, o imprevisto, é aproveitado de outra forma e não existem propriamente erros. Sem este conceito de “erro”, acaba-se com a hierarquia que é criada na estrutura musical. A liberdade cria, assim, uma horizontalidade neste tipo de expressão.

Recua um pouco mais na tua história. Como foste parar à música? Porque escolheste o violino como instrumento?

Oiço música desde que nasci, desde pequenina. Fazia parte do meu dia-a-dia. Do lado da minha mãe, muitos familiares meus estudaram música. Do lado do meu pai não estão tão ligados, mas ele sempre adorou música. Portanto, são ambos amantes de música. A minha mãe tem o curso de piano, a minha avó tinha de violino, piano, canto e harpa. As minhas tias-avós também estudaram todas piano, muito à frente para o seu tempo. Isto nos anos 1930. Tive as coisas muito facilitadas e tenho consciência desse privilégio. Mas não escolhi logo o violino: o que havia em casa era um piano. A minha mãe tocava piano, o meu irmão estudou piano. Começámos todos pelo piano, mas sempre ouvia falar no violino por causa da minha avó. Ela faleceu pouco antes de eu nascer e havia sempre uma foto dela com o violino. Fiquei sempre com a ideia de o violino ser bonito. Continuo a adorar o piano e ainda bem que o estudei. Só comecei a estudar violino um pouco mais tarde – aos 12 ou 13 anos.

Fizeste curso superior em música?

Sim, fiz o curso de violino na Escola Superior de Música de Lisboa e antes o Conservatório, o percurso todo normal. No início frequentei a Academia de Amadores da Música e gostei muito. Fiz prova para entrar para piano no Conservatório e alguém me perguntou: «Se pudesses, o que te apetecia fazer?». E eu respondi que gostaria de tocar violino – isto na própria prova de piano! (risos). Acabei por seguir o violino.

Houve momentos em que pensaste desistir?

Às vezes interrogo-me sobre como é que sobrevivi até aqui. Durante a vida académica, muitas vezes pensei «o que é que estou aqui a fazer?». Porque isto é realmente muito difícil, é muito frustrante, muito complicado e exigente, muito inglório e muito conservador. Muitos dos programas de ensino ainda são dos anos 40 do séc. XX. Por isso é que me pus a fazer experiências pedagógicas. Tive a sorte de a minha família ter uma escola e de poder fazer coisas diferentes – experimentar e chegar a conclusões de que há outras maneiras de ensinar que podem ter bons resultados, sem ser estas que nos impõem. Mas pronto, devagarinho, o ensino vai abrindo. Por exemplo, a improvisação vai, cada vez mais, pé ante pé, entrando um pouco na academia, embora ainda haja muito a fazer. Nesta resistência contínua durante os meus estudos, houve sempre uma coisa que me dizia «olha que a música não tem culpa disso». A música é outra coisa, é uma entidade superior a isso tudo. Continuo por amor à música, e nem vou dizer que é por amor ao meu instrumento, é à música em geral, como expressão.

Há uma ideia, talvez até cliché, que diz que não há géneros musicais superiores. A música é boa ou má, independentemente do género, e ou te diz algo ou não te diz. Até pode ser uma música “pimba”, mas pode tocar-te. Concordas com isso?

Sim, isso já aconteceu, pode haver uma parte que me toque. São coisas que acontecem comigo. Não acredito na superioridade de uns géneros musicais sobre outros. Há muitas outras expressões que são também desenvolvimentos de linguagens incríveis, como o rock e o punk, que são fortes e mexem comigo, e isso é o mais importante. Não as desvalorizo face à música clássica ocidental.

Como vês o panorama português deste tipo de música? Achas que temos construído um espaço próprio, nomeadamente na área da música improvisada?

O cenário está diferente, sem dúvida. Nestes últimos anos, os últimos 10 talvez, houve uma abertura e um interesse mais generalizados. Claro que estamos sempre a falar de uma certa franja social que é mais aberta a vários géneros musicais. Acho que há uma dimensão internacional maior, há mais gente interessada e que ganhou mais voz nesta última década. Já havia gente a fazer muito bom trabalho, mas eram mesmo poucos. Foi-se fazendo caminho e essas pessoas foram e continuam a ser importantes para o que está agora a acontecer. Nem há 10 anos que eu toco esta música, mas isso não quer dizer que antes não assistisse a alguns concertos de música improvisada. Lembro-me de ir ver Carlos “Zíngaro”, que é muito importante para mim, e Ernesto Rodrigues, Luís Lopes, Rodrigo Amado, Sei Miguel, Fala Miriam… O MIA foi crescendo e trouxe mais gente para este tipo de música. O meio “underground” de Lisboa, que é o que conheço melhor, originou mais espaços para se tocar. Esses espaços começaram a interessar-se por estas novas linguagens mais experimentais e passou para fora que havia uma cena em Lisboa, em bares como o Irreal, por exemplo, que foi muito importante.

Achas que há conservadorismo em relação à música improvisada?

O jazz já é uma música improvisada, já tem um fator de improvisação – portanto, é natural que venha um maior número de gente daí do que da música clássica, para esta música. Ainda que as linguagens da música “clássica contemporânea” e da música improvisada se toquem, por vezes sendo difícil distinguir o que é escrito do que não é. Acho que, em geral, entre músicos e ouvintes, as pessoas estão um bocadinho mais abertas do que há uns anos. Vou dar-te um exemplo: comecei há uns anos a organizar a ImproJam, uma série de “jam sessions” de música improvisada. Podia ir toda a gente que quisesse improvisar. Começou a aparecer gente muito jovem, ainda alunos, fosse dos cursos de jazz ou da clássica, do Hot Clube, da Escola Superior de Música e de outros sítios… Portanto, estudantes ainda que diziam que adoravam fazer música improvisada, que na escola já havia alguma flexibilidade, mas ainda não tanta assim para se ter uma disciplina de música improvisada – por exemplo, de “jam”, de liberdade. Eles próprios tinham criado grupos e as suas próprias “jams”, e depois encontraram esta, onde podiam tocar com outros músicos de fora da sua escola, alguns deles já experientes. Passaram dois ou três anos e muitos desses miúdos estão agora aí a tocar em todo o lado, porque têm uma formação e uma abertura incríveis, que eu não tive. As coisas já evoluíram para melhor, nesse sentido.

Como vês a tão forte ausência de mulheres instrumentistas na música?

Sou positiva quanto a isso: há uma evolução. Devagar, mas as coisas têm estado a evoluir nestes últimos anos. Mesmo assim, é verdade que há menos mulheres na música improvisada do que há no jazz, por exemplo, ou na música pop. Acho que cada vez há mais mulheres instrumentistas no jazz, sem serem só cantoras ou pianistas, mas o jazz, de facto, é uma música muito machista. Ou tornou-se, nos primeiros anos da sua história não era assim tanto. Afinal, a base de tudo o que somos é patriarcal. Estruturalmente, a nossa sociedade é patriarcal e os problemas vêm daí. Por muitas lutas feministas que tenham sido travadas e continuem ativas, o lugar da mulher ainda é muito difícil. As mulheres precisam de fazer um enorme esforço para terem acesso, para se fazerem notar e para serem aceites, na maior parte dos casos. Ainda há muitas mulheres músicas que nem sequer sabem da existência de música improvisada… Há uma estrutura patriarcal de raiz. Graças à luta de muita gente, e à luta feminista neste caso, devagarinho lá vamos ganhando alguns direitos e invadindo alguns espaços. É natural que as coisas levem algum tempo, são séculos de poder masculino. No caso desta música, acho que tem mesmo que ver com essa raiz machista que se instalou no jazz, e ainda se faz um pouco sentir, porque a maior parte das pessoas vêm de lá… Até te digo que senti menos machismo no ambiente da música clássica do que sinto na música improvisada. E na clássica as mulheres tocam uma diversidade de instrumentos muito maior do que no jazz e na improvisada. Já relativamente à questão do assédio sexual verifico que existe tanto na música clássica como no jazz. Mesmo falando disto tudo sou positiva: há cada vez mais mulheres a aparecerem.

Sabemos que estás ligada ao Queer Fest. Fala-nos um pouco deste festival e de como vês o ativismo interseccional aplicado à música.

Entre as várias lutas pelos direitos humanos que existem, duas ganharam especial pertinência nos tempos que correm pela sua comum dimensão interseccional: o feminismo e o movimento queer, abrangendo ambas, por exemplo, a luta contra o racismo, a luta pelo trabalho digno ou a luta por igual acesso aos mesmos direitos por homens, mulheres e pessoas de outros géneros. Tudo isso influencia também a música. Apercebi-me que havia muita gente que tinha pouca projeção, pouca voz, mas que anda a fazer muito bom trabalho e falei sobre isso com Rui Eduardo Paes. Ele convidou-me para organizarmos juntos o Queer Fest, até porque eu também tinha começado a fazer programação. Fizemos um levantamento des artistas queer que existiam e concordámos que era urgente dar palco a estas pessoas. O festival inclui também performance, literatura, artes plásticas e debate, o que é muito importante.

O que achas que poderia ser feito para alterar a realidade em que vivemos? O facto de estares ligada à formação de uma banda composta só por mulheres foi também uma necessidade de resposta?

Como o problema é de base, o sistema político tem de ser transformado, porque vem tudo daí; é o sistema que nos leva a fazer as coisas de uma maneira ou de outra. E claro que a educação tem nisso um papel super importante. Como sabemos que é muito difícil mudar o sistema assim de repente, vamos fazendo estas lutas interseccionais – todas estas lutas combinadas poderão vir a mudar o que está tão mal. Embora o meu desejo fosse por uma mudança mais radical e mais rápida, as coisas não acontecerão assim, acho eu…

E o que achas de encontros e espaços só com mulheres a tocar? Por exemplo, a vossa banda Lantana surgiu por acaso, foi pensada como uma banda só com mulheres ou foi já em resposta a isto que temos estado a falar?

Tem um bocadinho disso tudo. Começa pelo gosto de tocarmos juntas, primeiro do que tudo, como pessoas. Todas nós já tocávamos umas com as outras, mas não as seis ao mesmo tempo. Ninguém faz esta pergunta a um homem que tenha um sexteto, ninguém faz, pois não? Então, por causa disso, a Joana [Guerra], que está nestas lutas como eu – mais engajada –, pensou: «Porque não fazermos uma banda só com aquelas amigas mulheres com quem gostamos mais de tocar?»… E fizemos as Lantana por causa disso. É também em resposta, mas vem muito do gosto de tocarmos umas com as outras. Não tenho nada contra existirem espaços onde estejam só mulheres a tocar, mas não vejo o mundo separado entre só homens e só mulheres, não tenho uma visão binária. Somos levados a crer que há apenas duas maneiras de ser, mas o ser humano é muito mais plural do que isso. Em certos tipos de ambientes e de estruturas sociais, compreendo que as mulheres se juntem e assim se sintam mais seguras para fazer o que pretendem. Preferia, claro, que isso não tivesse de acontecer. Seria bom que houvesse liberdade para toda a gente e que as mulheres não tivessem medo de tocar o que quisessem.

Esta é uma entrevista que foi realizada para a jazz.pt

https://www.jazz.pt/entrevista/2021/07/07/musica-e-liberdade/

Jacqueline Monteiro, o violino e a música

Foto: https://pt.gf.me/v/c/gfm/estadia-em-londres

Jacqueline Monteiro é violinista. Toca desde tenra idade e, aos 22 anos, já completou a licenciatura em violino na Academia Nacional Superior de Orquestra. Iniciou-se neste instrumento através do projeto Orquestra Geração, em Vialonga, tendo depois frequentado a Escola Profissional Metropolitana de Lisboa. Foi recentemente admitida com sucesso para fazer mestrado na Guildhall School of Music and Drama, em Londres, o que lhe valeu também uma bolsa de mérito. Jovem instrumentista, Jacqueline lançou uma campanha de crowdfunding para conseguir chegar a Londres e seguir o seu sonho de tocar violino profissionalmente.

Pedi-lhe que nos falasse um pouco de si.

Gostaria que nos dissesses onde tocas atualmente.

Atualmente faço parte da Orquestra Juvenil Geração e tenho um quarteto formado por quatro mulheres que se intitula Active Mess.

Como foi o teu primeiro contacto com a música? Tens alguém na família com ligação à música?

O primeiro contacto com a música/violino foi no meu 1º ano de escolaridade, ou seja, com 6 anos de idade. Foi sugerido na minha escola na altura a prática de aulas de violino e eu, bastante curiosa para saber como seria, perguntei à minha mãe se podia fazer parte, e foi aqui o meu primeiro contacto com a música clássica, não tive nenhuma influência ou alguém na família que tocasse, foi mesmo por pura curiosidade.

Porquê a escolha do violino?

Na verdade, não tive opção, quando implementaram a música na escola o único instrumento disponível na altura era o violino.

Sei que a aprendizagem da música “clássica” é bastante exigente. Houve momentos em que te apeteceu desistir? Ou sentiste sempre que era isso que querias, aprender violino para tocar profissionalmente?

É verdade, é bastante exigente e houve sim um momento que pensei em desistir, que foi no meu 10º ano, quando prossegui os meus estudos na Escola Profissional Metropolitana de Lisboa. Diria que o choque de ir para uma escola onde era música a tempo inteiro e em que o nível era bastante alto senti que não seria capaz de acompanhar por ser muito exigente, mas, felizmente, o meu professor na altura, César Nogueira, incentivou-me e mostrou-me que tudo era possível se trabalhasse, disse ainda que seria uma pena eu desistir pois achava que eu tinha jeito, então depois de uma conversa também com a minha mãe decidi ficar!

O que pensas do ensino da música “clássica” em Portugal? Achas que é muito “fechado” ou te dá ferramentas para poderes enveredar por outros géneros musicais, caso o pretendas fazer?

Não creio que exista essa abertura na música clássica para “estilos diferentes” e vice-versa, muitas vezes no jazz ouvimos “isto não é clássico” como se fosse uma coisa má. Sou de opinião que a música clássica e o jazz complementam-se em vários aspetos, e, de certa forma podia haver um “senso” de entre ajuda.

Em relação à música clássica diria que seria preciso ter o à-vontade/aproveitamento e entrega que existe no jazz, a coragem e incentivo para o improviso e para o que não é “confortável”. Quanto àquilo que o clássico pode oferecer ao jazz, com a probabilidade de poder estar completamente errada visto que não é uma área com que estou familiarizada, mas, talvez a valorização da música escrita.

E a tua experiência como violinista? O que gostas mais de tocar? Em que formato?

De todas as formações, a que realmente me conquistou, sem dúvida, é a orquestra. Adoro trabalhar em equipa e poder partilhar o que sinto não só com o público, mas também com quem toca ao meu lado. Basicamente para mim tocar em orquestra traduz-se numa história, existe um ditado que diz “quem conta um conto acrescenta um ponto” e é exatamente isso que eu sinto quanto toco em orquestra, pois o “conto” é igual para todos, porém, a interpretação é única dependendo da orquestra e do maestro, fazendo com que haja sempre algo a dizer/mudar/descobrir/encobrir, enfim um mundo de conceitos e sentimentos a serem explorados fazendo desta formação uma experiência incrível. Uma das obras que mais gosto, e gostei de tocar é o 2º andamento da 5ª sinfonia de Tchaikovsky, aquela cama/base harmónica feita no início do andamento para o solo da trompa é realmente genial.

Contudo, faço parte de um quarteto (3 violinos e um violoncelo) que se chama Active Mess e que nada tem a ver com o clássico, a maioria das músicas que interpretamos são do estilo Pop, mas, ultimamente temos explorado mais música tradicional, começamos com música cabo-verdiana visto que dois dos membros são de Cabo Verde, e a partir daqui seguiremos à procura de outros estilos para interpretação até encontrarmos a nossa própria linguagem dentro da música.

Fala-nos um pouco do projeto Orquestra Geração e da sua importância.

A Orquestra Geração……

Bom a Orquestra Geração é um projeto de inclusão social com o objetivo de tirar as crianças “da rua” e inseri-las na música, mas, mais do que isso cria /oferece uma alternativa/um caminho diferente às crianças!

A orquestra é realmente muito importante na minha vida pois foi lá que tudo começou, faço parte da orquestra desde a sua criação, em 2007, e onde, hoje, sou não só aluna como também professora. Tenho a dizer que foi aqui, nesta família que a maior parte do meu caracter e dos meus valores foram formados, juntamente com o meu sonho de ser uma grande violinista e professora.

Nesta Família onde os principais valores são disciplina, trabalho em equipa e paixão, foi-me possível viajar pelo mundo e conhecer não músicos e maestros incríveis como também pessoas extraordinárias! Durante essas viagens percebi que por mais que as culturas ou os idiomas pudessem ser diferentes falávamos todos a mesma língua…a linguagem musical.

A música move pessoas e move horizontes, por isso só tenho a agradecer a este projeto que mudou a minha vida de uma maneira inacreditável.

A orquestra Geração realmente fez, e faz a diferença!

Achas que por seres uma mulher negra e por teres crescido na periferia de Lisboa, caso não existisse a Orquestra Geração, terias igualmente estudado música?

Sinceramente, não acho que seria possível sem a Orquestra Geração, e não, certamente não teria estudado música, isto porque infelizmente o sistema de educação não está adequado ao seu tempo… como é que temos o mesmo sistema de educação de há anos atrás sendo que a história tem evoluções constantes?

Digo isto porque por mais que neguem os pretos aqui em Portugal quando acabam o 9º ano de escolaridade o mercado de trabalho que os espera é sempre o mesmo….trabalho doméstico, a mecânica, a construção civil, e mais antigamente a jardinagem, não desvalorizando estes trabalhos, que são muito dignos, mas sim criticando, por acharem que não somos capazes de mais, então ser uma preta e violinista, tocando “música tão sofisticada” deve ser o escândalo.

Na escola lembro-me muitas vezes de ter ouvido a seguinte frase “Ah é preta/o?!?!?! Então com certeza é da Orquestra Geração”, dizendo então que se não fosse pela Orquestra Geração os pretos não seriam músicos?!?!?! Ou porque acham que na Orquestra Geração são só pretos?!?!?

Isto tudo para dizer que acho que existe racismo na música e que sim existem desigualdades exatamente por esse mesmo motivo, a crença de que existe uma “raça” superior à outra e que a cor da pele define automaticamente o teu futuro.

Sabemos que estás com um projeto de crowdfunding para ires estudar música para Londres. Fala-nos sobre isso.

Verdade!! Criei uma campanha para angariar fundos para a minha estadia em Londres no meu primeiro ano de mestrado em performance.

Em novembro de 2020 fiz provas de ingresso a mestrado na Guildhall School of Music and Drama em Londres, onde, com sucesso, fui aceite e ainda premiada com uma bolsa de mérito pela minha prestação durante as provas, porém, tanto a universidade como o custo de vida em Londres são bastante elevados, e, por isso, criei o crowdfunding para pedir a ajuda de todos.

Estudar nesta universidade, para mim, sempre foi um sonho, pensava eu que não passaria disso mesmo, por não confiar piamente nas minhas capacidades enquanto violinista, mas, uma vez que consegui provar a mim mesma, e ao júri da prova, que sou capaz, não quero de todo perder esta oportunidade única por questões monetárias.

O curso, mestrado em performance, tem duração de 2 anos, o valor servirá então para todas as despesas mensais da casa como renda, luz, gás, água, alimentação entre outros. Durante o primeiro ano a ideia é usar esse dinheiro para estes fins, porém é meu objetivo também conciliar o estudo com um trabalho para que no segundo ano consiga pagar a estadia com o dinheiro que tiver poupado até então.

Dado isto, seja a quantia que for, ou mesmo a partilha da angariação de fundos ajudaria muito, esforçar-me-ei para obter os melhores resultados, como tenho feito até então, para alcançar o sucesso e espero de coração que vocês possam fazer também parte dele!

https://pt.gf.me/v/c/gfm/estadia-em-londres

Nota: esta é uma entrevista feita por escrito.

À procura do improviso – Joana Guerra

Tal como o nome indica, hoje darei início a uma rubrica destinada à procura do improviso. A ideia será partilhar, em cada texto, o trabalho de uma improvisadora que esteja ligada ao mundo da música em Portugal. Não por qualquer tipo de nacionalismo, sou descrente nesse tipo de ideias, mas porque há ainda um caminho muito longo a percorrer na divulgação da música de mulheres em Portugal. Algo que é fruto do que eu classificaria até como um grande atraso.

Joana Guerra foi a primeira improvisadora que procurei. Se pensarmos numa palavra para definir a sua música, será telúrica. Violoncelista, compositora, improvisadora e cantora, não é difícil fechar os olhos, escutá-la, e irmos ao encontro da Terra, de tudo o que vem do seu interior, e de tudo o que brota à sua superfície.

Foi numa escola perto de casa, nos subúrbios de Lisboa, que começou a aprender música, tendo mais tarde frequentado o Conservatório. Em 2011 iniciou-se a solo, voz e violoncelo, e a partir dai não parou mais.

Já lançou quatro álbuns da sua autoria, em 2013, Gralha, em 2016, Cavalor Vapor, em 2018, OsSo, e em 2020, Chão Vermelho. Durante este período tem trabalhado com diversos músicos na área do jazz, da música improvisada e experimental.

No seu primeiro disco, Gralha, são já reveladas muitas das qualidades de Joana Guerra enquanto criadora. É notória a sensibilidade para a escuta e reprodução dos sons que estão à nossa volta e que a natureza nos dá. A utilização do arco no violoncelo em notas longas, como um baixo contínuo, juntando-se o clarinete baixo de Ricardo Ribeiro, com intervenções de voz em diálogo com os restantes sons e melodias, algumas vezes provocando desarmonia,  transmite-nos esse ambiente telúrico, como se se tratasse de um chamado, um grito de lamento da Natureza.  O “pizzicato” nas cordas, em contraponto, transporta-nos para o detalhe, para o pormenor. Ao mesmo tempo, com a sobreposição das cordas em arco, dá-nos a ideia de desenvolvimento, da evolução e crescimento, no fundo, do ciclo da vida. Descobrimos e entendemos que o exercício da composição musical pode ser maravilhoso e muito interessante quando segue caminhos fora dos limites das técnicas de composição mais convencionais que muitas vezes caem na utilização mais repetitiva de padrões harmónicos e rítmicos. Na faixa “O mar”, a presença de Joana enquanto cantora e violoncelista é intensa. A força do som do violoncelo é, ao mesmo tempo, de uma grande sensibilidade, fazendo-nos viajar para o mar alto, onde as ondas balançam em dia de tempestade. 

Em Cavalos Vapor, é introduzida a percussão de forma mais presente e experimental.

Nos tempos de pandemia, 2020, surgiu o seu disco mais recente, Chão Vermelho. Foi apresentado em Lisboa, no auditório da Culturgest, a 8 de Junho de 2021. Foi levado a palco com Maria do Mar, no violino, e Carlos Godinho, na percussão.

Num concerto de mais de uma hora, o público foi envolvido pela música e pelo cenário criado por Miguel Domingues, com desenho de luz de Catarina Côdea. Um ambiente muito orgânico tomou conta da Culturgest, como se se ouvissem as fissuras do solo a estalar, e as pequenas raízes a perfurá-las, a crescer e a ocupá-las. Mais uma vez o contraponto fez-se muito presente que, ora estava no violoncelo através da utilização do arco ou das cordas dedilhadas, ora estava na percussão com o uso de diferentes instrumentos e objectos sonoros. A percussão também surgia ao acaso, inesperadamente, por vezes de forma aleatória, outras a marcar o ritmo, numa métrica continua. Sobre o contraponto contínuo, a voz da Joana parecia um chamamento, uma voz de alerta, selvagem, retratando sons um pouco animalescos, talvez de aves, talvez de lobos a trincar a sua presa. Salienta-se aqui um lado muito performativo de Joana Guerra.

O encanto profundo da sua música conduziu-me a mente para climas secos, quentes, onde o solo grita por água. Se por um lado a percussão e o violoncelo remetiam para esse ambiente, o violino de Maria do Mar guiava o ouvinte para os pormenores e as suas melodias com o arco retratavam talvez a pequena vida animal, quase que microscópica, que se move ou rasteja sobre esse chão vermelho onde interage o interior da Terra com o seu exterior, com a atmosfera.


Foi assim… Fish Wool na MONO Lisboa

Fish Wool, o trio composto por Susana Santos Silva no trompete, Yedo Gibson no saxofone e Vasco Trilla na bateria, tocou no espaço MONO Lisboa, no passado dia 4 de Junho, um concerto organizado em parceria com a editora Robalo Music.

Num cenário de fim de tarde e com os raios de sol a depositar-se nas janelas, a vasta experiência no campo da música improvisada por parte dos três músicos é notória. Foi particularmente especial o facto de podermos assistir a um trio com a presença de uma mulher instrumentista, improvisadora, tão raro no panorama português

Foi um concerto de grande exploração acústica e tímbrica. Os músicos projectaram os seus instrumentos em diferentes ângulos, dando a ideia de que conseguíamos visualizar o disparo do comprimento de onda do som, que se projectava na sala num ziguezaguear constante. Criou-se tempo de quase silêncio, mas que rapidamente evoluiu para sons mais fortes e de rítmica acelerada. Há nestes instrumentistas de sopro a abertura para pensar os instrumentos como produtores de som, mesmo que seja de forma menos usual: com possibilidade de percussão, de criação tímbrica com as próprias chaves/pistões, ou através do sopro ou do cantar para o seu interior. Houve momentos de notas soltas isoladas, mas pensadas no tempo e no espaço, e de notas longas, nomeadamente no trompete de Susana Santos Silva, com exploração de técnicas respiratórias. Algumas vezes, os movimentos rápidos chegaram pelo saxofone de Yedo Gibson, em movimentos arpejados e oscilatórios. A bateria de Vasco Trilla estabeleceu conexões, como seria de esperar, sem impor uma métrica definida e deixando-se levar pelo fluxo sonoro, marcando também a sua personalidade.  

De salientar como bastante interessante e versátil, a dinâmica criada à volta da exploração de outros objectos, como as lâminas das velhas caixinhas de música.

Para quem costuma insinuar que a música improvisada traz consigo músicos que “não sabem tocar”, desenganem-se.  Estes músicos têm um grande domínio dos seus instrumentos e uma grande sensibilidade musical. Isso nota-se na qualidade e intensidade das suas notas, na criação de frases sonoras muito precisas, consistentes e expressivas, na capacidade de improviso em conjunto, no saber ouvir os colegas. Foi um concerto com uma energia muito especial.