Em tempos difíceis para a Cultura, surgem boas notícias do regresso de Espectáculos e Festivais. Infelizmente, quanto à participação de mulheres, é ainda um caminho longo a percorrer. Deixo aqui algumas sugestões para os próximos dias.
Outfest – Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro | 3 a 5 Junho www.outfest.pt
Com destaque para:
3 Junho – Susana Santos Silva | Parque Paz e Amizade | 18h
4 Junho – Svetlana Maras |Auditório Municipal Augusto Cabrita | 20h45
5 Junho – Odete & Herlander |Auditório Municipal Augusto Cabrita | 21h45
———-
4 Junho – Sofia Ribeiro Quarteto | Festival de Jazz de Valado dos Frades – Sala do Clube |21h
———-
4 Junho Fish Wool |MONO Lisboa | 19h30
———
8 Junho Joana Guerra | Culturgest | 21h
———
MIA – Encontro de Mísica Improvisada de Atouguia da Baleia | 18 a 20 Junho
O panorama nacional do jazz e da música improvisada tem evoluído bastante. São inúmeros festivais que surgiram nos últimos anos, músicos referenciados a nível internacional, encontros internacionais de jazz organizados em Portugal e editoras a aparecer. É o momento para se reflectir que tipo de interlocutores actuam em todo este processo. Está na hora de nos questionarmos o porquê de músicos, professores, editores, produtores, críticos serem sempre, ou quase sempre, homens brancos. Não que este debate deva ser uma “guerra” das mulheres contra homens, até porque os homens com este mesmo entendimento terão um papel fundamental, mas sim uma reflexão em conjunto, de pensamento crítico, de constatação da realidade e de se perceber que há algo que não está a fluir de forma correcta.
A evolução do jazz e da música improvisada deve muito ao 25 de Abril. Esta mudança política e social no país teve um papel essencial na educação musical. Se até então a formação estava muito associada às elites, em sua sequência houve uma democratização do ensino da música. Essa democratização traduziu-se na criação de escolas de música públicas, na abertura de mais espaços com música ao vivo, na partilha de experiências, etc. No fundo, tratou-se da possibilidade de uma vida em liberdade, com melhores condições económicas e sociais, que permitiu todo esse desenvolvimento. Passados quase 50 anos deste dia, são muito poucas as mulheres que seguem a formação superior na área do jazz, nomeadamente as instrumentistas. A ausência de mulheres negras torna-se ainda mais gritante, bem como as suas dificuldades em se afirmarem serem ainda maiores. Infelizmente, o racismo está muito presente no nosso país, nomeadamente ao nível institucional, que empurra as mulheres negras para trabalhos mais precários e as afasta do mundo das artes.
Discriminação, uma realidade também presente na música?
Com mais desigualdade numas áreas do que noutras, esta problemática não atravessa apenas o campo da música (mesmo dentro dos diferentes géneros musicais, há diferenças). As várias formas de discriminação expressam-se no dia-a-dia de diferentes maneiras. A desigualdade de género, o racismo, a lgbtfobia são reais e podemos constatá-lo quando vamos a um concerto, ou quando vemos a programação de um festival, ou quando lemos uma crítica. Não há espaço para essas pessoas. São barreiras criadas desde muito cedo. Lanço aqui a questão aos educadores/professores de música na área do jazz… quantas alunas frequentam os vossos cursos comparativamente com o número de alunos? Quantas dessas alunas são negras? Será para aceitarmos isso como algo natural? Não estará na hora de mudar, de fazer algo para que a mudança se dê desde já? Não basta dizer que os espaços estão aí e que elas são bem-vindas.
Uma mulher quando decide ser música (aqui usado o feminino propositadamente), tem o quádruplo da dificuldade que um homem teria para se afirmar. Tem que provar muito mais em como é capaz. Devido à discriminação exercida pelo machismo, além de todas as dificuldades inerentes à insegurança, falta de auto-confiança e medo ao se expor, muitas das vezes, no meio masculino, o seu trabalho não é levado a sério ou é questionado se ela será capaz. Para não falar de todo o assédio sexual presente no mundo da música.
Quando se chega à idade adulta, para quem tem o desejo de ser mãe e não tenha uma carreira lançada, a maioria das vezes tem de optar por colocar de lado esse desejo. Não querendo, são criticadas porque são egoístas. No caso de serem mães, é muito difícil conciliar as tarefas domésticas, cuidar dos filhos, com a música. Porque, ao contrário dos homens, que têm as mães dos filhos para cuidar deles, salvo raras excepções, elas não têm essa disponibilidade dos pais das crianças.
O intuito deste texto não é dar respostas claras, até porque a autora também não as tem. Contudo, algumas atitudes podem ser um passo para a mudança: mais debate sobre o tema e diálogo junto dos educadores musicais, junto dos espaços, junto das editoras, produtores, junto de toda a comunidade. Deveria olhar-se e aprender-se com o exemplo de outros países. A Inglaterra parece estar a dar passos importantes, também a Suécia, a Holanda, ou mesmo os próprios Estados Unidos. A criação de encontros de mulheres improvisadoras poderia ser um ponto de partida, bem como a realização de sessões de improvisação/jam sessions só com mulheres. Talvez a organização de debates junto das escolas de música e junto das escolas de ensino comum, para que possamos ouvir o que elas, alunas, têm a nos dizer.
Nos próximos dias 27 e 28 de Maio irá decorrer, em Estocolmo, o Stockholm Women´s International Jazz Stream Festival & Conference 2021. Será mais um passo para a visibilidade das mulheres na esfera do jazz. Poderemos assistir online ao evento.
Informação partilhada na página de Facebook (tradução):
“O Festival Internacional de Jazz Feminino de Estocolmo apresenta anualmente alguns dos nomes mais importantes da cena do jazz moderno. Pela primeira vez, o festival terá lugar no Konserthuset. Criatividade, diversidade e comunicação são as três palavras-chave que caracterizam o programa deste ano. O festival consiste numa conferência diurna e duas noites de festival com concertos.
A conferência será transmitida para nossa página do Facebook e Youtube diretamente do palco Konserthuset. Em breve postaremos os links diretos em nosso feed.
O Festival de Música será transmitido via KONSERTHUSET PLAY sem login e aberto para todos.
Se aprecias os nossos esforços e desejas que continuemos o nosso Festival anualmente, por favor, contribui com uma doação para nosso SWISH NUMBER 123 348 09 36 – somente para a Suécia.
Agenda do festival 27 de maio
16h30 – Linnea Jonsson Quartet (Suécia)
17h45 – IdKa Jazz (Suécia)
19h – Quinteto Sun-Mi Hong (Holanda / Coreia do Sul)
20h30 – Maria João (Portugal)
A noite do festival no dia 27 de maio é organizada com o apoio das Embaixadas da Holanda e Portugal.
Programação do festival 28 de maio
16h30 – Quinteto Anna Lundqvist (Suécia)
17h45 – Susanna Risberg Trio (Suécia)
19h00 – Josefine Lindstrand Band (Suécia)
20h30 – Pianoduo Sunna Gunnlaugs e Julia Hülsmann (Islândia / Alemanha)
A noite do festival em 28 de maio é organizada com o apoio da Embaixada da Islândia, Goethe-Institut e Fundação Svensk-Isländsk.
O Festival Internacional de Jazz Feminino de Estocolmo é apresentado em cooperação com o Konserthuset Stockholm. Com o apoio de Musikverket, Kulturrådet, Região de Estocolmo.
A Conferência é apresentada em colaboração com a Europe Jazz Network, Kulturens, Keychange e Svensk Jazz.”
A trompete serviu de partida para Yazz Ahmed, mas hoje também toca fliscorne. O seu som é o encontro de diversas culturas musicais – são diferentes partes do Mundo que se cruzam na sua música e na sua improvisação.
Intrusiva, inquietante e misteriosa, escutar Yazz Ahmed com atenção poderá tornar-se uma viagem longa e mágica, digna de um certo transe musical.
Viveu a infância no Bahrein e mudou-se para Londres aos 9 anos. Com origem materna em Inglaterra e paterna no Bahrein, Yazz Ahmed manifesta esta troca de culturas na sua música. Inicialmente teve formação clássica, mas acabou por se ligar ao mundo do jazz por influência do seu avô materno, o trompetista Terry Brown.
Com poucos álbuns gravados, Ahmed demonstra forte criatividade, sem preconceitos nem fronteiras, que a acompanha como compositora, instrumentista e improvisadora.
Em 2011 lançou o seu primeiro álbum, “Finding My Way Home” . Dos seus trabalhos, este é o que mais se aproxima de um certo jazz mais ocidental, talvez ainda um pouco ingénuo. Contudo, já ousa alguma exploração sonora, onde se denota a presença de alguns elementos árabes, como escalas e ritmos. Em 2017 lança “La Saboteuse” e, em 2019, “Polyhymnia”. Efectuou também outras gravações e reeditou álbuns. Escutar qualquer um dos seus trabalhos, é uma viagem.
Ao longo do seu desenvolvimento, verifica-se a importância dada à presença de uma vasta instrumentação, numa tentativa de misturar e explorar as várias ferramentas ao seu dispor, como pontes de diálogo. Em “Polyhymnia” já podemos escutar a presença de uma orquestra, com diferentes sopros, cordas, teclas, percussões, vozes e eletrónica. Nos seus trabalhos todos os instrumentistas estão muito presentes e com solos muito consistentes. Ahmed também se vai afirmando com o fliscorne, instrumento que lhe permite desenvolver os quartos de tom, tão característicos da música árabe. Dessa mistura de sons nasce a riqueza da sua música – o cruzamento de fronteiras geográficas, culturais, sem dogmas nem preconceitos.
Ahmed já afirmou em entrevistas que o álbum de Rabih Abouh-Kalil, “Blue Camel”, a inspirou muito para a sua música. Também ela, principalmente nos seus dois últimos álbuns, explora a influência do jazz aprendido e tocado em Londres com os ritmos e harmonias árabes. Se, por um lado, em “La Saboteuse”, encontramos uma experimentação mais eletrónica, com destaque para grandes solos no clarinete baixo, onde começa a ser definido um caminho muito próprio, diferente do primeiro álbum (inclusive, faz lembrar também alguns westerns com elementos de rock). Por outro lado, em” Polyhymnia”., encontramos um grande trabalho de composição para orquestra. Aqui, a instrumentista, compositora e improvisadora pretende afirmar na música um carácter mais político. Ahmed inpirou-se na musa da mitologia grega, Polyhymnia, para falar de histórias de mulheres incríveis como Malala Yousafzai ou Rosa Parks, numa espécie de celebração e incentivo ao poder e criatividade das mulheres. Poderá afirmar-se que Polyhymnia é um álbum feminista.
Yazz Ahmed tem tido destaque no mundo do música como uma das melhores instrumentistas e compositoras de jazz da actualidade. No ano de 2020 venceu os prémios “2020 Jazz FM Award for UK Jazz Act of the Year” e “The Ivors Composer Awards 2020”.
As improvisadoras. Onde estão essas mulheres que tocam, que compõem, que sentem o som, que improvisam? Onde estão elas e os seus instrumentos?
Mais de 100 anos após o surgimento dos primórdios do jazz, constato que foram muito poucas aquelas que ficaram consagradas na história deste género musical. Percebo que, mesmo para essas poucas, apenas lhes foi permitido ocupar um espaço reduzido e bem delimitado: o lugar de cantora, por vezes pianista e, raras vezes, compositora. Caso combinassem estes três campos, eram tratadas como perigosas, ameaçadoras, até por perdidas e loucas. Muitas delas, produto da América segregacionista, foram alvo de racismo, violência doméstica, física e psicológica, abuso sexual e assédio. Mesmo assim, essas poucas mulheres, chegaram tão longe.
Hoje, tantos anos passados, a pergunta continua a impor-se… porque foram só essas, tão poucas? Porque, no mundo desta música que se diz tão livre, continuam as referências masculinas constantes?
O cenário parece dar alguns sinais de mudança, ainda que muito superficial. Na transição de 2020 para 2021, finalmente surgem nomes de mulheres nas listas de “melhores do ano”. Elas começam a impor-se e dão sinais de não querer voltar atrás. Contudo, a voz dos críticos de música continua a ser, também ela, sempre masculina.
Apesar da proliferação de inúmeros festivais e escolas de jazz, tanto ao nível nacional como internacional, alguns dos críticos e apreciadores de música afirmam que o jazz tem os dias contados. Será esta uma realidade? Será este um género musical que por ter sofrido tantas transformações irá perder as suas raízes e deixará de existir? Estarão eles a referir-se ao Bebop? Penso que este não é um tema de resposta simples e que estará, com certeza, na origem de muitos estudos. Contudo, é um campo importante para reflexão, o da evolução da música, nomeadamente deste género de música, os meios sociais onde se desenvolveu e o papel da mulher no seu interior. Aprofundando a questão, sob um espectro mais filosófico e pensando nas novas improvisadoras, outra reflexão a fazer é se, sendo o jazz considerado música improvisada, a música improvisada, pode toda ela ser considerada jazz?
É importante pensar o presente da música improvisada. É importante olhar o jazz e a sua evolução. Desde que comecei a gostar de jazz e a assistir a concertos com regularidade, de todos as vezes que olhei o palco me perguntei, “mas porquê só homens? Onde estão as mulheres?”
São tantas as perguntas …mas há uma que não me sai da cabeça, talvez a principal: como é possível colocar-se a hipótese do fim de um género musical onde tantas mulheres foram invisíveis e tão poucas chegaram e não nos questionarmos o porquê? Não será estranho pensarmos na morte de um género de música que nasceu e se desenvolveu com tantas mulheres invisíveis?
Uma conclusão posso tirar: somos nós que vivemos o nosso tempo, vamos dar visibilidade às mulheres improvisadoras. Talvez ai possa ser mais fácil o seu caminho. Este espaço servirá para falar sobre a música delas, improvisadoras.