Mary Halvorson

BELLADONNA / AMARYLLIS (Nonesuch)

jazz.pt

Com dois discos de uma assentada, a guitarrista Mary Halvorson confirma a sua enorme qualidade enquanto instrumentista e compositora.

Maio de 2022 – Mary Halvorson, conceituada guitarrista norte-americana, lança dois discos de uma assentada: “Amaryllis” e “Belladonna”, pela editora Nonesuch Records. Em duplo acto, Halvorson confirma o que já se esperava: a sua enorme qualidade enquanto instrumentista e compositora. Embora estando muito associada ao jazz, o seu percurso tem cruzado a música clássica, o rock, a música improvisada, experimental e eletrónica. Podemos afirmar que Mary Halvorson é uma artista visionária, uma vanguardista no mundo da arte, que interliga as suas várias influências para criar uma linguagem muito própria. 

Dois álbuns que contam com a participação do quarteto de cordas Mivos Quartet, com Olivia De Prato e Maya Bennardo no violino, Victor Lowrie Tafoya na viola d’arco e Tyler J. Borden no violoncelo, sendo que em “Amaryllis” a guitarra de Mary Halvorson se faz acompanhar ainda por cinco outros músicos – Patricia Brennan no vibrafone, Nick Dunston no contrabaixo, Tomas Fujiwara na bateria, Jacob Garchik no trombone e Adam O’ Farrill no trompete.

É inevitável comparar um disco com o outro. Se por um lado “Belladonna” é mais melódico, no sentido clássico, por outro “Amaryllis” tem uma presença mais rítmica e exploratória, embora se encontrem estes dois elementos em ambos. O facto de no primeiro a guitarra se acompanhar por instrumentos de corda e no segundo também por instrumentos de sopro e percussão, terá aqui alguma influência na percepção sonora.

Em “Belladonna” é a primeira vez que Halvorson compõe para um quarteto de cordas. E logo em “Nodding Yellow”, a primeira música, escutamos o quão desafiante é essa composição, pois Halvorson consegue colocar o quarteto a tocar com a guitarra em ciclos polirrítmicos, ou seja, quando uns fazem tempos fortes, outros tocam tempos fracos para, a dada altura, criar um conjunto sonoro, quase “non sense” para ouvidos habituados a tempos perfeitos e devidamente encaixados. Percebemos aí a beleza em algo aparentemente desarrumado. E com certeza não terá sido fácil para cada um destes músicos encontrar o seu lugar em “Nodding Yellow”. É desconstruir para construir. Em “Haunted Head” é hora de sonhar sob o embalo de uma espécie de canção, com destaque para o solo do violoncelo e da guitarra. Claramente que “Belladonna” tem bases na música clássica, mas com a guitarra a destoar e a colocar o quarteto Mivos constantemente à prova. É reveladora a excelente qualidade destes músicos em ambos os álbuns, pois são constantemente desafiados, quase a cada segundo, e respondem sem hesitar, como nos revela o final da música “Belladonna”, já a entrar pelos caminhos do rock, ou mesmo “Moonburn”, quando a guitarra foge ousadamente da teia em que o quarteto de cordas a quer aprisionar, valendo-se dos sons eletrónicos.  

Se “Belladonna” é um encontro do passado com o futuro, “Amaryllis” é um encontro do futuro com o passado. Os dois discos estão tão interligados que funcionam como um pêndulo, que viaja de um para o outro, mas cuja origem é uma só. 

“Amaryllis” inicia-se com “Night Shift”, uma entrada embriagante com seguências repetitivas e variações entre o vibrafone, a guitarra e os sopros. Mas esse ambiente algo zonzo dissipa-se um pouco com a entrada do solo de trombone seguido do de vibrafone – são dois solos com muita energia e personalidade. “Night Shift” constrói-se numa estrutura jazzística mais tradicional: tema, espaço para improvisação, regresso ao tema inicial. Pode dizer-se que este é um álbum muito dialéctico, pois em “Anesthesia”, reencontramos o mundo mais clássico que a determinado momento desabrocha para  a ideia do som como algo exploratório, experimental.  Mas não ficamos por aqui. Na música que dá nome ao álbum, a entrada do contrabaixo, bastante ritmada e repetitiva, acompanhada da bateria e por vezes da guitarra, leva o ouvinte para a estética sonora do rock progressivo, muito ansioso, mas com as modulações características do jazz e com intervenções dos sopros a lembrar também um pouco o mundo das big bands.

As primeiras três músicas do álbum “Amaryllis” são tocadas apenas pelo sexteto e são mais agitadas, inquietas, até um pouco aflitas. Já nas últimas três, quando se junta o Mivos Quartet, há uma ligeira mudança para um ambiente mais harmonioso.”892 Teeth” retrata muito bem essa movimentação, uma espécie de balada mais instrumental, com harmonias menores, que nos faz sentir a paz, uma levitação que se intensifica com a chegada do bonito solo de vibrafone.

Ao escutar os novos trabalhos de Mary Halvorson podemos entender que se tratam de dois discos de consensos, uma espécie de mediação, onde podemos encontrar muitas das influências musicais da guitarrista norte-americana – desde a música clássica, ao jazz, à música experimental, eletrónica e até um pouco de rock. Se por um lado constatamos mais uma vez as suas qualidades enquanto guitarrista, por outro, e acima de tudo, estes dois discos cimentam o excelente trabalho de Halvorson enquanto compositora e criadora.

Texto publicado em jazz.pt | 15-12-22:

https://www.jazz.pt/criticas/mary-halvorson-belladonna-amaryllis-nonesuch

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